Todos os dias eu tenho a nítida impressão de que estou sendo feito de trouxa. Acho que não estou sozinho.
Hoje eu acordei com a notícia de que a minha assinatura do Mercado Livre (que dá acesso a Disney plus e garante frete grátis para compras acima de determinado valor) vai aumentar de preço.
Daí eu te pergunto: se eu já acordei com essa, o que tem pra hoje?
Essa história já está ficando batida. Começa com uma empresa oferecendo um produto em uma oferta bastante sedutora. Pode ser um preço bem baixo, uma comodidade que os concorrentes não estavam acostumados ou então alguma funcionalidade que acabe colocando o produto num patamar bem superior aos seus concorrentes.
Você se lembra quando Uber começou a operar no Brasil? Eu me lembro. Fui convidado a experimentar o serviço em um evento em fevereiro de 2015. Lembro que àquela época eu já havia lido sobre a empresa e sua atuação em diversas cidades dos Estados Unidos.
O carro que eu peguei em minha primeira era um sedã de último tipo, com bancos de couro e tudo o mais. Era um serviço de luxo sendo oferecido por um preço mais baixo que o de uma corrida de taxi aqui em BH.
Conversando com os motoristas tanto no trajeto de ida quanto na volta para casa, eles me falaram que estavam conseguindo lucrar bastante com aquele trabalho. Apenas elogios.
O tempo foi passando e a gente foi se acostumando a usar Uber como uma alternativa a Taxis em cada vez mais cidades. Mais motoristas começaram a participar e, com isso, o serviço foi se tornando cada vez mais parte de nossa rotina. Houve quem dissesse que um dia os taxis acabariam e só teríamos Uber na rua.
Hoje, a experiência de fazer um percurso usando Uber não é mais como em 2015. O padrão dos carros mudou, novos tipos de serviços foram adicionados e se eu quiser uma corrida em um sedã de úlktimo tipo, terei que pagar mais. O preço por cada corrida também mudou. Hoje usar Uber não significa mais que o seu trajeto será mais barato do que o trajeto de taxi. Pelo menos não tão mais barato como era.
Outra coisa que mudou radicalmente é o quanto o motorista vinculado a esta empresa ganha pelas corridas. Se lá em 2015 o motorista se gabava do quanto ele conseguia ter como rendimento trabalhando dessa forma, hoje a coisa é outra. Os motoristas precisam rodar muito mais por dia para poderem arcar com os custos envolvidos com a atividade. Rendimento, mesmo… muito pouco.
O que acontece com a minha conta (que muito provavelmente em breve cancelarei) no Meli+ e o que acontece com o motorista que trabalha com o Uber tem relação e se chama enshitification. O nome é bonitinho (porque é em inglês) mas a tradução é bem mais explicativa para nós brasileiros: merdificação.
Este conceito é bem interessante e vem sendo trabalhado por seu criador e ativista da internet Cory Doctorow. Empresas, depois de conseguirem uma participação de mercado que as coloque em situação confortável, reduzem a qualidade da sua oferta. Em outras palavras, depois que o produto passa a ser amplamente utilizado, ele acaba ficando pior. Mas perceba: o produto não fica pior porque tem mais gente usando. Ele fica pior porque a empresa decide piorar o produto para maximizar seus lucros.
O conceito não é exatamente novo. A abordagem com o universo da tecnologia é que é bem nova e a sacada do Cory Doctorow é excelente por causa disso.
Na economia este conceito se chama Dumping e explica a prática de uma empresa (normalmente uma grande empresa que está entrando em um mercado novo) de praticar preços mais baixos que os de custo de forma a assegurar um futuro monopólio. Quando este monopólio é assegurado, os custos em operar abaixo da linha da lucratividade num momento inicial são revertidos e quem paga a conta é o consumidor.
Enshitification tem muito a ver com Dumping porque também se relaciona com monopólio. Uma empresa, digamos… uma ferramenta de busca ou uma plataforma de compartilhamento de fotos, por exemplo, lançam seus produtos com qualidade superior à de seus concorrentes. Oferecem experiências bacanas para as pessoas que passam a usar estes novos serviços deixando os concorrentes de lado. Uma vez que muitas pessoas estão usando o produto, as empresas atraem parceiros (que podem ser anunciantes) para participarem do processo. A estes parceiros a oferta também é tentadora. Se para usar o serviço as pessoas não pagam nada e tem acesso a uma boa experiência como contrapartida, para os parceiros, os anúncios são baratos e eficientes. Um anunciante pode alcançar muitas pessoas com sua mensagem em uma plataforma boa desse jeito.
Daí, quando a plataforma (seja ela de busca ou um serviço de compartilhamento de imagens) ganha praticamente plena adoção de usuários e empresas, chega a hora de pagar a conta. A qualidade do serviço diminui, o preço do anúncio fica mais alto e a vantagem que antes usuários e parceiros enxergavam em usar a plataforma desaparece. Você pode ter um vislumbre daquilo que um dia foi se pagar uma alta monta de dinheiro para impulsionar postagens ou anunciar na plataforma, por exemplo.
Esses três passos são o que Cory Doctorow descreve como enshitification ou merdificação. O que eu expliquei aqui em poucas palavras é apresentado em detalhe e com muito mais autoridade pelo próprio Cory Doctorow em uma apresentação que ele fez na DefCon 31, que aconteceu no ano passado. Este vídeo com a fala do Cory Doctorow é a minha primeira recomendação de hoje. É uma fala muito importante para entendermos a merda em que estamos afundados.
Não tenho dúvidas de que a experiência com Uber, com o mecanismo de buscas e com a plataforma de compartilhamento de fotos que mencionei aqui se enquadram perfeitamente no conceito de merdificação. Estamos vivendo isso em vários sentidos, com relação a vários serviços que usamos em diferentes aspectos de nossas vidas.
O que tem pra hoje, então é que, enquanto não fizermos nada, estaremos afundados nessa merda. Não há eufemismos para isso. A gente precisa se lembrar que existem opções para todos estes serviços que a gente usa e que estamos notando que estão ficando piores.
Certamente existem diversas opções ao Uber, incluindo aquelas que não remuneram tão mal os motoristas. Elas podem ser menores, podem ser as cooperativas de taxi, pode ser uma empresa com um modelo de negócio novo que ainda nem decolou, mas ela existe e quando a gente puder, a gente deve usar a alternativa e incentivar seu crescimento na luta contra a empresa grande que quase virou um monopólio.
O mesmo vale para o mecanismo de busca e para a plataforma de compartilhamento de imagens. Há alternativas e podemos usa-las. Achar que a solução monopolística é a única viável não é uma boa. Em primeiro lugar porque ela não é a única solução viável. Em segundo lugar porque se abrirmos mão de usarmos as alternativas, jamais escaparemos das garras daqueles que estão tornando tudo pior pra gente e ainda, não daremos espaço para ninguém crescer. Nesse sentido há até um movimento de startups bem interessantes que, ao invés de se colocarem como futuros unicórnios, elas se colocam como zebras, porque a ideia delas não é a de crescer indefinidamente e se transformarem em gigantes. a ideia é a de apenas resolver problemas das pessoas e sobreviver com segurança. Sobre as zebras eu posso falar outro dia. Vamos começar a caminhar para o fim deste áudio que já está ficando muito longo…
Minha meta para fazer este encerramento é apresentar as duas próximas recomendações bem rapidamente, mas não menos importantemente.
Nesse sentido a segunda recomendação que faço é o livro do Cory Doctorow em que ele traça o plano sobre como vamos retomar o controle de nossas vidas digitais e sairmos dessa posição de reféns de poucas empresas. O livro se chama The internet con. É uma leitura relativamente rápida e repleta de detalhes e aspectos históricos que vão ajudar muito a gente a entender como os monopólios se desenvolveram. Por exemplo, foi lendo o texto do Cory Doctorow que eu descobri que o Yahoo Messenger e o MSN trabalhavam o padrão de mensagens XMPP, que era aberto e permitia a interoperabilidade. Isso foi bem bacana para integrar vários serviços. Até que as empresas decidiram fechar seus protocolos e isolarem seus serviços uns dos outros.
“Por qual motivo as empresas resolveram fechar seus serviços, Caio?” você pode me perguntar. A resposta é a minha última recomendação de hoje: a música Greed, do Fugazi. A música está no primeiro disco da banda, de 1990.
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