Provável que você tenha ido dormir tarde na noite de ontem e acordou cedo hoje cansado. Provável que você esteja acordado além da hora que deveria ter ido pra cama. Amanhã vai acordar cansado. Estas generalizações que estou fazendo tem um motivo e uma explicação. Mais sobre isso adiante.
A gente vai para a cama cansado, acorda cansado, passa o dia inteiro cansado sem parar de trabalhar, estudar, enfim. Estamos o tempo todo cansados e com a impressão de que as coisas a fazer nunca acabam.
Quando a gente deita a cabeça no travesseiro, não consegue escapar daquele sentimento de culpa de que o dia rendeu menos do que deveria ter rendido. Fizemos menos do que deveríamos ter feito.
Poderia ser só isso, mas além do cansaço que sentimos constantemente e do sentimento de que deveríamos ter feito mais, há também um sentimento de tédio; de que nada é o suficiente. De que não estamos aproveitando os nossos dias com atividades entusiasmantes. Este é um sentimento de tédio do pior tipo possível. Isso porque nos incapacita, nos paralisa. Há um outro tipo de tédio que, paradoxalmente é muito benéfico para a gente e que a gente não tem experimentado há tempos.
Isso não acontece só com você. Está generalizado. É a sociedade do cansaço que o Byung-Chul Han fala. Se você ainda não leu este livro, eu recomendo fortemente que você leia. Ele faz parte de um conjunto de publicações que apresentam reflexões sobre como estamos coletivamente detonando nossas vidas sem percebermos. Mais sobre outros livros depois.
Agora eu quero me dedicar a falar com você sobre essa sensação que você (e eu) temos o tempo todo. Esta percepção de que a gente não está fazendo o suficiente e, ainda assim, não paramos de trabalhar. Como pode isso?
Bem, eu entendo que há uma relação íntima entre este estado mental de cansaço e frustração contínua que vivemos e nossa relação com as plataformas sociais. Os autores que vou recomendar a você ao longo desta fala de hoje me ajudam a construir esta argumentação. Vamos lá.
Uma coisa bem importante que a gente vive na sociedade atual é a superexposição à informação. Somos alertados o tempo todo de que algo novo aconteceu. Quase a totalidade dos aplicativos instalados em nossos telefones nos enviam alertas diários. Às vezes múltiplas mensagens nos falando que algo requer nossa atenção.
A gente já se acostumou com isso e aprendeu a conviver com as constantes interrupções que os alertas proporcionam. A gente é o tempo todo interrompido por algo que pode ser importante e nos notifica com um barulho que demanda uma ação imediata.
O Byung-Chul Han faz referência ao tempo que vivemos como sendo um período em que a gente precisa ser muito produtivo. Paradoxalmente a produtividade é inimiga das interrupções. Então quando a gente precisa fazer alguma coisa, preferiria não ser interrompido, né? Só que as outras pessoas não estão pensando nisso e nos mandam mensagens constantemente. Além disso os aplicativos que usamos notam a nossa ausência e demandam nossa atenção com alertas informando que algo importante aconteceu e você precisa saber.
Isso arrebenta com a nossa capacidade de produzir algo mais elaborado ou engajar em uma tarefa mais longa. O Cal Newport fala bastante sobre isso no seu livro chamado Trabalho Focado. Para ele a gente precisa de períodos sem interrupção para podermos realizar tarefas que demandam mais de nossa capacidade intelectual. Quanto mais fragmentamos nosso tempo por causa das interrupções, mais prejudicado é o nosso rendimento ou aprendizado.
Então a gente tenta se acostumar com os constantes alertas que se colocam pra gente e vai se virando com a nossa produtividade comprometida. Claro que isso nos deixa num estado de constante tensão. Não adianta ignorar que uma mensagem chegou e continuar com a sua tarefa. O fato de ter uma mensagem lá te esperando é o suficiente para t desconcentrar em sua tarefa e você vai ficar matutando o que pode ser que precisa de sua atenção.
Ou seja: uma coisa é a nossa necessidade (ou exigência coletiva introjetada em cada indivíduo) de sermos produtivos e a outra são as constantes interrupções que nos sujeitamos. Uma vai contra a outra mas elas se encaixam perfeitamente em nossa sociedade contemporânea.
Se ao menos a gente conseguisse lidar com a espera pela resposta a uma mensagem, né? Mas outro autor, que é o Christoph Turcke nos fala no livro Hiperativos que, à medida em que mudamos as nossas relações com o consumo de informações e mídia, mudamos a forma com a qual esperamos que várias outras coisas em nossas vidas aconteçam também. Para o Turcke, no contexto anterior, em que a gente era obrigado a esperar uma semana para ver um novo episódio de uma série ou então o tempo que a gente tinha que esperar para o filme de uma máquina fotográfica acabar e só aí podermos levar a uma loja para revelar aquele negativo e ampliá-lo para vermos as fotos que tiramos fazia bem pra gente. Ensinava a gente a lidar com a espera. Nesse mesmo contexto a gente não estava disponível o tempo todo para conversar com quem quer que fosse. Houve uma época em que você ligava para a casa de uma pessoa e, se ela não estivesse lá, você deixava um recado e precisava agora esperar a pessoa voltar e decidir te ligar de volta. Só assim vocês conseguiriam conversar. O mesmo acontecia no contexto do trabalho.
Só que agora estamos disponíveis o tempo todo. E queremos que todos estejam disponíveis para nos atender instantaneamente. Nossa paciência e capacidade de esperarmos foi pro beleléu. A gente quer tudo para agora. Fica furioso quando alguém desliga o recibo de leitura no WhatsApp e fica chateado quando demoram a nos responder.
O Cristoph Turcke fala que isso prejudica bastante a nossa capacidade de aprender porque a gente se acostumou a ter tudo o que solicitamos instantaneamente à nossa disposição. Assim a gente acaba não refletindo sobre o que consome. Não há um tempo para digerir nenhuma informação.
Quando você termina de assistir um vídeo no YouTube ou no Netflix, as plataformas apresentam uma contagem regressiva indicando que o próximo conteúdo vai começar. A gente nem tem tempo de pensar sobre o que acabamos de assistir. A gente nem quer pensar. A gente se acostumou a não pensar. A gente só quer o próximo conteúdo agora. A gente só quer ser respondido imediatamente. A gente só precisa não parar de trabalhar para responder e atender a todas as demandas que a gente recebe ao longo do dia. Sem pensar.
Por isso que quando a gente deita a cabeça no travesseiro à noite, fica com a sensação de que nada foi feito. Porque de verdade a gente fez pouca coisa mesmo. A gente apenas reagiu. Executou. Atendeu. A gente pouco pensou. Daí o trabalho acumula para o dia seguinte porque todos os outros esperam da gente um rendimento maior e a gente segue nessa rotina de cobrar e sermos exigidos numa roda de santa catarina que jamais para. Que coincidência engraçada este nome, né?
Enfim. Este constante estado de alerta, associado com a necessidade de produtividade e a frustração de não ter dado conta daquilo que a gente tinha que fazer deixam a gente no estado de burnout que o Byung-Chul Han fala em seu livro. Voltamos a ele.
Como eu falei há pouco, há uma relação muito próxima entre estes sentimentos e nossos hábitos de consumo de informações em mídias sociais. A gente precisa estar o tempo todo de olho no que os outros postaram. Afinal, podemos estar perdendo algo. As pessoas esperam isso de nós. A gente precisa postar sempre. A gente precisa participar. A gente precisa produzir conteúdo.
A gente precisa produzir e publicar o conteúdo que produzimos porque a gente tem a pressão coletiva de mostrar a que veio. A gente precisa dizer para todo mundo que a gente sabe muito de algo. Profissionais de várias áreas de atuação se veem forçados agora a também se transformarem em pessoas de influência em seus campos de atuação. Certa vez eu tive um aluno que me falou que viajaria para São Paulo para ter uma consulta com um nutrólogo. Perguntei a ele: “mas por qual motivo ser atendido por um nutrólogo de São Paulo? Aqui em BH não tem nutrólogos bons?” Ele me respondeu: “Mas este não é de São Paulo. Ele é de Curitiba. Está indo para São Paulo apenas para atender alguns seguidores por um dia apenas”. “Seguidores?” Perguntei. O aluno me disse que o nutrólogo era bom porque tinha mais de 100 mil seguidores no Instagram.
Ou seja: que desgraça a vida do profissional de saúde, do arquiteto, do advogado, do engenheiro, do mecânico de automóveis que agora, além de ter que ser bom para conseguir clientes, precisa fazer sucesso na mídia social para poder ter a validação de que é bom e conseguir por ali os clientes.
O nutrólogo, o arquiteto, o mecânico de automóveis agora precisam encaixar em suas rotinas diárias de trabalho o tempo necessário para produzirem conteúdo que seja bom o suficiente para que eles obtenham destaque no Instagram.
Está percebendo onde eu estou querendo chegar?
A gente (coletivamente) agora, cada um em sua área de atuação, está trabalhando muito mais porque também – para além de todas as nossas atribuições diárias – precisamos arranjar um tempo para “produzir conteúdo” e mostrar para o mundo que somos bons em alguma coisa. Para quem não faz isso resta aquele sentimento de que está aquém ou de que não é simplesmente bom em nada.
Claro que estou hiperbolizando aqui, mas a sensação coletiva é essa. Sobre este tipo de generalização, já falei antes e repito agora: mais adiante eu abordo isso, calma.
As plataformas sociais algoritmicamente manipuladas carregam parte da responsabilidade por nos sentirmos assim. Estes espaços se transformaram em verdadeiros campeonatos de popularidade. A lógica algorítmica das plataformas de impulsionarem (ou mesmo mostrarem) conteúdos que entendem gerar “engajamento” faz com que todo mundo se comporte como se uma marca fosse. A gente se esquece de ser pessoas quando o imperativo do engajamento algorítmico opera.
Então agora a gente tem pessoas que passam boa parte de seus dias produzindo um conteúdo sobre algo que às vezes pouco conhecem para parecerem especialistas numa área. Este conteúdo vai ser exibido para outras pessoas que, por saberem menos ainda sobre aquele assunto, vão achar que aquilo é verdade; afinal, um especialista com sei lá quantos mil seguidores no Instagram falou. Então deve ser verdade, né? Do contrário, este especialista não teria este tanto de seguidores.
É a roda de Santa Catarina dando mais uma volta.
Sofre a pressão de ter que produzir constantemente o profissional que precisa mostrar seu trabalho nessa vitrine injusta. Ela é injusta porque não são claros para quem produz e muito menos para quem consome o conteúdo, quais são os critérios e qual é a lógica que opera na circulação desse material. O que entendemos (ou nos cabe entender) é que quem fala quão alto devemos dar nossos pulos é a plataforma. Ela não se incomoda em nos dizer o motivo de pularmos.
Sofre a pessoa que vê o conteúdo e não sabe o que fazer com ele, sentindo-se aquém de suas possibilidades. Sofre aquele que não dá conta de produzir e acha que algo está faltando.
Sofremos todos e recorremos às plataformas algoritmicamente manipuladas em busca de algo que nos mostre um caminho. Mas o que vemos é apenas mais postagens de especialistas e, claro, anúncios. Esta é a Sociedade da Transparência, que é outro livro do Byung-Chul Han. Neste ensaio o filósofo nos apresenta questões decorrentes da nossa presença exacerbada nas plataformas sociais e as suas implicações para as nossas vidas. A perda do segredo e o desaparecimento do encanto da descoberta conjunta se revelam constantes nos nossos dias. Aquilo que se mostra um imperativo num momento (ou seja: devemos nos mostrar; falarmos nas plataformas sobre as nossas capacidades) é extrapolado organicamente em nossos comportamentos cotidianos. Acabamos, coletivamente, por transpor para as plataformas sociais todos os aspectos de nossas rotinas, sendo este um outro imperativo consequente: todo mundo falando de tudo sobre suas vidas e tendo todo mundo como plateia.
Sobre isso há uma série de desdobramentos sérios a considerar. Byung-Chul Han nos fala de consequências imediatas relacionadas às maneiras pelas quais nos relacionamos uns com os outros. O autor enfatiza a questão da perda do encantamento em uma comparação que eu acho ser muito legal com a pornografia. O jeito como escancaramos as nossas vidas pessoais nas plataformas sociais é pornográfico porque desvela nossas vidas a uma plateia que consome tudo isso num processo de prática vigília. Nesse ponto, Han fala que o panóptico foi substituído por um contexto em que cada prisioneiro vigia o outro. Não precisa (embora ela exista) existir mais uma entidade centralizada que observa a todos. Agora todos estamos observando uns aos outros.
Para além dessas consequências que Han fala no Sociedade da Transparência, entendo haver outras que se relacionam ao que Frances Haugen tornou público em 2021. As dinâmicas de uso das plataformas sociais algoritmicamente manipuladas podem proporcionar danos à saúde mental das pessoas. As plataformas sabem disso, mas nada fazem. Ou melhor, atuam para que isso não apareça de maneira tão proeminente. Para elas, está tudo bem. Castells já indicava serem as plataformas (ou nas palavras dele, operadores das redes) novos detentores de grande poder neste contexto híbrido de comunicação em rede. E olha que ele falou isso no livro O poder da comunicação, que é de 2016 em sua edição traduzida.
E pra onde isso nos leva? A rotina e a dinâmica que nos impomos como sociedade nos leva a esse estado que iniciei comentando na fala de hoje. É o esgotamento da sociedade do cansaço. Mas existem ainda algumas coisas que gostaria de falar.
O processo de pesquisa acadêmica é moroso e doloroso. Não é rápido aprender conceitos e fazer pesquisa. Uma das coisas que aprendemos neste caminho é que a gente precisa ver pluralidade de interpretações de conceitos para entender mais aprofundadamente o que algo quer dizer e como este algo se relaciona com aquilo que estamos construindo como nosso aprendizado. Por qual motivo trago isso agora? Porque esta coisa da pluralidade das interpretações é chave tanto no processo de formação quanto na nossa vivência no dia a dia nas plataformas sociais.
Voltemos à roda de Santa Catarina. Especificamente à parte em que nos sentimos frustrados ao vermos os conteúdos que aparecem para a gente sugeridos pelos algoritmos das plataformas sociais comerciais.
Eventualmente a gente é apresentado a conteúdos que não domina ou que na verdade nem sabia que existiam. Estes conteúdos são produzidos por pessoas das mais diversas origens e formações. São pessoas que não necessariamente conhecemos e que nos apresentam coisas dizendo que aquilo é verdade, que é confiável e que elas são especialistas naqueles assuntos. Estas são as pessoas das quais falei há pouco. É o nutrólogo, o Arquiteto e o Mecânico que estão em busca de consolidar-se como pessoas influentes ou de referência em suas áreas.
Pois bem, a gente não conhece estas pessoas e nem sabe se o que elas estão falando é verdade. Mas a gente é humano e os humanos consideram inicialmente como verdade aquilo que lhes é apresentado, via de regra. Essa coisa de considerarmos inicialmente aquilo que ouvimos, lemos ou vemos dos outros como verdade é algo que nos ajuda, inclusive, a entender o espalhamento de desinformação. Mas sobre isso vou me dedicar a falar em outra ocasião. Por agora, o que é importante é juntarmos duas coisas que ainda estão perdidas nesta fala de hoje. A primeira é que a gente tende a generalizar coisas a partir de experiências individuais que temos. Lá no começo da fala eu faço uma generalização, apresentando um pressuposto baseado em minha experiência pessoal. Isso é bem comum de acontecer. Quando a gente não conhece muito sobre outras experiências em um determinado campo ou assunto, tendemos a pensar que todas as vivências relacionadas no mundo serão da mesma forma. Por exemplo: se você teve uma péssima experiência com um som da marca CCE, você vai tender a achar que todos os aparelhos dessa marca são ruins.
Este tipo de generalização a partir de experiência pessoal, como é possível antecipar, não tem muita fundamentação ou validade, né? Só que é difícil a gente levar isso em conta enquanto está rolando o feed do Instagram. Por isso que é fácil a gente acabar sentindo que está fazendo algo errado, ou que não está fazendo o que deveria fazer ou mesmo que está aquém em suas realizações quando a gente vê uma pessoa nas plataformas sociais com uma performance que a gente não está conseguindo ter. Isso pode te levar a interpretar as suas próprias realizações de um jeito muito ruim. Em primeiro lugar porque tal qual a facilidade de generalizar a partir de experiências pessoais e de considerar qualquer coisa que ouvimos, inicialmente, como verdade, também somos levados a comparar nossas vidas com as vidas dos outros. A angústia e aquele sentimento de não realização podem estar vindo daí.
Assim, para tentar finalizar esta fala que acabou ficando por demais longa hoje, é importante a gente prestar atenção que ao menos parte destes sentimentos ruins que a gente tem com relação à nossa produtividade e às expectativas que colocamos para nós mesmos vêm de reações ou atitudes que temos de forma natural e esperada frente às coisas que são apresentadas pra nós. Talvez sejam mais algumas externalidades negativas das plataformas sociais sobre as quais precisamos ficar atentos. Enfim. É o que tem pra hoje.
Bem, acho que ficaram algumas pontas soltas neste texto. Eventualmente tentarei resolver todas as questões. Sobre o bom tédio e o tédio ruim pra gente, vou falar em outra ocasião. Um abraço!